Catarina Osório de Castro
Texts
Pó de Estrelas

Todos concordam que as fotografias são silenciosas por natureza. As que falam e cantam são as fotografias do cinema, graças à banda magnética da película. Uma fotografia projeta-se no papel, como um filme se projeta na tela. Nesse processo, a imagem fixa-se uma segunda vez, poder-se-ia dizer que é definitivamente votada ao silêncio. E, no entanto, por vezes falamos de uma imagem “cortante” ou até “gritante”, em sentido figurado. As fotografias de Catarina Osório de Castro não são apenas mudas, são também silenciosas — sem querer cair na tautologia. Isto para sublinhar a discrição no trabalho da artista, que em 2012 intitulou a sua primeira série de fotografias, como que num programa por vir: SILÊNCIO.

A sua discrição não a impede de transgredir as regras próprias da fotografia. Os “erros” que comete deliberadamente ao fotografar já estavam presentes em SILÊNCIO, onde, por exemplo, uma corda passa mesmo em frente ao rosto de um homem de pé, cobrindo o corpo nu com uma toalha de praia e tornando o seu rosto invisível. Na série DEVAGAR, a artista regista luzes que não iluminam tudo, deixando na sombra o conteúdo de um cesto (frutas? legumes? objetos?). Na sua nova série PÓ DE ESTRELAS, o enquadramento é mais apertado do que nunca. Corta o rosto. O rosto de uma mulher, pintado com maquilhagem prateada, é recortado no limite do lábio inferior — sensual, pintado — e o foco incide apenas na ponta do nariz. Este recorte extremo já estava anunciado na série ECLIPSE, com a cabeça de um cavalo branco reduzida apenas ao focinho e pescoço.

Na primeira parte ADN do seu último vídeo SCÉNARIO, concluído apenas dias antes da sua morte, Jean-Luc Godard mostra, numa imagem fixa, a vista frontal de um animal angulado. Poder-se-ia pensar tratar-se de um cavalo branco. Com a sua velha voz rouca, o cineasta fala em off: “Imaginemos um cavalo branco, para ilustrar o facto de que os cavalos não são cavalos… o universo é um dedo, tudo é um cavalo.” No fim da segunda parte, em IMR, Godard retoma a sua fórmula de inspiração taoista, sentado de pijama na beira de uma cama: “Pegue-se em dedos, para ilustrar o facto de que os dedos não são dedos… pegue-se em não-cavalos para ilustrar o facto de que os cavalos não são cavalos.” Segue-se a sua última palavra pública: “OK.” E, no entanto, o animal exibido no vídeo ADN não é um cavalo, mas um burro! Horas antes de deixar voluntariamente este mundo, o cineasta, através de Jean-Paul Sartre, remetia ao filósofo taoista Zhuangzi, cuja obra o sinólogo Jean-François Billeter descreve como “polifónica … [onde] a reflexão vem com ela [a polifonia].” [1]

Catarina Osório de Castro desenvolve uma abordagem taoista [2] do mundo. Talvez o seu interesse por estufas e outros “jardins de aclimatação” provenha do pensamento de Zhuangzi. [3] Com a sua nova série PÓ DE ESTRELAS, a artista leva-nos a jardins botânicos — de Lisboa a Paris, a Glasgow e por aí fora. Numa estufa já em decadência, Cleistocactus winteri derramam-se em cestos suspensos, como caudas de lémures infindáveis e incolores. Na mesma imagem, um ramo de Euphorbia polyacantha, nativa da Etiópia, Sudão e Somália, estende-se para fora, deslizando ao longo de uma barreira de vidro como um corrimão que perdeu a aderência. Uma fotografia macro mostra a ponta de um cacto “peludo”, provavelmente um Espostoa melanostele, as suas extremidades formando um halo de santidade, os caules espinhosos riscados a laranja através da nuvem difusa. Noutra imagem, vemos uma planta fragmentada — ou melhor, parte do seu tronco, grosso como um bambu envelhecido, entrelaçado com algumas folhas.

A humidade sempre presente, perceptível também em duas fotografias de folhas de fetos (provavelmente Woodwardia ou Cibotium), sugere processos ocultos de decomposição. Outra estufa, fotografada longitudinalmente com a extremidade arredondada, domina dois terços da imagem. Em primeiro plano, surge uma paisagem de musgo, cujo verde se desvanece em amarelo-palha. Caules com flores monocromáticas parecem definhar por falta de água. Na mesma estufa, desta vez fotografada de lado e ligeiramente enviesada, a artista observa um homem visto de costas, contemplando a paisagem de musgo. Poder-se-ia suspeitar tratar-se de um intruso, tal é a cumplicidade das outras figuras das fotografias de Catarina Osório de Castro com a fotógrafa.

Uma estufa num jardim botânico será a abolição do espaço — até mesmo do tempo? [4] Se o Ocidente conheceu a sua primeira estufa no inicio da era cristã, depois dos egípcios e sobretudo dos chineses, os inventores, foi graças ao imperador romano Tibério, que desejava pepinos em pleno inverno. O século XVI assistiu à proliferação de jardins botânicos por toda a Europa. Mas as estufas como as conhecemos hoje, são sobretudo uma herança do colonialismo industrial. Aqui cresciam plantas das colónias. A maior estufa do Império Britânico fora da ilha foi construída em 1784 em Calcutá. Ali cultivavam chá e ópio — nada locais — para testar a sua resiliência em novos climas. Assim que as raízes se estabeleceram, os ingleses lançaram a produção de ópio no Bengala, ocupado desde 1690, e em 1839 iniciaram a Primeira Guerra do Ópio contra a China.

No taoismo, até a morte deve ser entendida como um movimento natural do Dao, uma das suas incontáveis transformações. Assim, diz-se que Zhuangzi cantou alegremente durante o seu luto, após a morte da esposa. Na perspetiva do Dao, tudo é transformação incessante. A busca da imortalidade, tema central do taoismo, provavelmente deriva de crenças muito antigas, pois no Zhuangzi, as figuras mais importantes entre os Imortais são o Imperador Amarelo e a Rainha-Mãe do Oeste — uma referência chave para a nossa artista. Esta Deusa é conhecida pela sua “energia dourada”, uma cor que reaparece em três rostos femininos em PÓ DE ESTRELAS.

Enquanto fotógrafa, Catarina Osório de Castro empreende uma das tarefas mais paradoxais [5]: revelar a essência das coisas e das pessoas. Tornar visíveis os aspetos que escondemos, aqueles que nos escapam à perceção. Presta uma atenção minuciosa às superfícies e às luzes que estas refletem. Dedica um cuidado extremo à execução, de tal modo que somos tentados a acariciar essas superfícies: aqui, um mar leitoso com uma pequena ondulação; ali, uma pálpebra envelhecida ao longo de décadas, quase transparente. Em séries anteriores, dirigia muitas vezes a sua sensibilidade para superfícies de pedra e rocha.

Esta profunda fascinação pelas pedras e pelas dimensões temporais que implicam — catapultando-nos centenas de milhões de anos atrás no tempo — é algo que partilha com o artista Uriel Orlow. Na mesma data e em paralelo, na mezzanine da galeria, ele apresenta o seu vídeo FOREST FUTURISM, acompanhado do seu FOREST MANIFESTO.

Em PÓ DE ESTRELAS, Catarina inclui apenas uma — mas que pedra! Uma pedra profundamente negra. A extensão da sua superfície sugere um grande rochedo. Um rochedo que, numa das suas cavidades, recolhe água da chuva, salpicada de minúsculos pontos brancos — minerais? Impossível determinar a materialidade dos pontos cintilantes, mas o efeito visual é inequívoco: vemos um céu estrelado refletido na água contida pela rocha. Como se invertêssemos a direção do olhar. Inclinamo-nos para baixo e descobrimos as estrelas de um céu limpo de nuvens. Um pó taoista?

O título PÓ DE ESTRELAS remete-nos para uma descoberta feita por astrofísicos em 1957, assinada B2FH, após Margaret Burbidge, Geoffrey Burbidge, William Fowler e Fred Hoyle. Eric Lagadec, astrónomo do Observatoire de la Côte d’Azur, explica: No artigo “Synthesis of Elements in Stars”, os quatro autores afirmam que… o Big Bang produziu principalmente hidrogénio e hélio. A maioria dos outros átomos formaram-se nas estrelas, que os libertam quando morrem. Esses novos átomos são então injetados no meio interestelar e servem para formar novas estrelas. Acontece que os nossos corpos, e os de todos os seres vivos, são feitos exatamente desses mesmos átomos! Podemos, portanto, dizer que somos pó de estrelas.

 

Joerg Bader

Genebra, setembro de 2025

[1] Jean-François Billeter, Leçons sur le Tchouang-Tseu, p. 126, Allia, Paris, 2023.

[2] “O Dao é algo misterioso sobre o qual é quase impossível de falar. […] O Dao não pode ser ouvido: o que pode ser ouvido não é o Dao. O Dao não pode ser visto: o que pode ser visto não é o Dao. O Dao não pode ser falado: o que pode ser falado não é o Dao. Aquilo que dá forma às formas não tem forma. O Dao não tem nome.” (Zhuangzi, cap. 22, pp. 182-186, trad. Jean Levi, Les œuvres de Maître Tchouang, Les éditions de l’Encyclopédie des nuisances, Paris, 2010).

[3] É uma relação incerta com o mundo — ou até com a própria realidade, como ilustra o célebre sonho de Zhuangzi: certa vez, despertou após sonhar que era uma borboleta e, ao refletir, já não sabia se era ele quem sonhara ser uma borboleta, ou se era a borboleta que sonhava ser Zhuangzi e acabara de acordar.(https://www.imaginairedelachine.fr/2020/06/zhuangzi-365-285-av.j.c.html)

[4] “Sintonizar-se com o Dao implica compreender as coisas não como fixas ou delimitadas, mas como um fluxo que transporta cada ser e cada entidade através de uma transformação incessante, abolindo as fronteiras do tempo e do espaço.” (Zhuangzi, cap. 13, p. 113, trad. Jean Levi, The Works of Master Zhuang, Éditions de l’Encyclopédie des nuisances, Paris, 2010).

[5] “As formas e as cores apreendem-se pela visão; os sons e as palavras apreendem-se pela audição. Porém, todos os meus contemporâneos continuam convencidos de que formas e cores, sons e palavras bastam para dar conta da realidade exterior. Mas como poderiam bastar? Eis porque aquele que sabe não fala, e aquele que fala não sabe. Como poderiam as pessoas comuns alguma vez compreender esta verdade?”

” (Zhuangzi, cap. 13, p. 113, trad. Jean Levi, The Works of Master Zhuang, Éditions de l’Encyclopédie des nuisances, Paris, 2010).

Útero

Pedras, linhas sem fim, fendas, buracos. Ventres, úteros minerais. Geradores de formas, de objectos, de coisas, de substâncias. No início do século XVI, Joachim Patinir, inventaria as suas paisagens a partir do estudo atento e minucioso de pedras e de musgos, a partir dos quais compunha sublimes montanhas arborizadas. Em 1611, Philipp Hainhofer, comerciante de Augsburgo escreverá ao irmão sobre as pedras a que chama "florentinas", descrevendo-as "mit selbstgewachsenen Landschaften" ("com paisagens geradas a si mesmas"). Hainhofer, forneceu ao duque da Pomerânia, bem como ao rei da Suécia, os seus famosos kunstschranken (armários onde se coleccionavam curiosidades)[1]. Pedras como imagens, pedras com imagens. Pedras que geram paisagens imaginárias, paisagens que se geram sobre as pedras.

As pedras onde primeiro se puseram os gestos, as mãos, as imagens. Onde nasceram as imagens. Suporte, matéria, mãe. Cenário, fundo, substância, material. Das formas nascem formas. Das substâncias outras substâncias. Quantas tradições cosmológicas em que o "homem" é feito, construído, e é feito com material já existente: é uma transformação, talvez uma transubstanciaçäo, uma animação do inerte. Seja qual for o processo: divino, voluntário, aleatório, químico, alquímico, astronómico ou astrológico... Tudo está em tudo, do mais pequeno ao maior, de Plínio a Carl Sagan.

A presente exposição procura essas semelhanças, essas relações, ficciona-as, estabelece-as constantemente. Procura-as, sobretudo, na imutabilidade do mundo mineral, como Cézanne o fazia nas estruturas geológicas. Procura-o no rigor dos enquadramentos, na proximidade táctil das texturas, no uso da luz e das sombras. No pequeno e no grande, no próximo e no distante, no dentro e no fora.

Uma relação com o mundo, o mundo todo, através de cada elemento concreto, de cada fragmento concreto e individual. Cada fragmento, cada pormenor, é um vestígio, um resto de uma passagem, um indício, cada um é significativo, cada um conta histórias e cada um é o item de uma colecção.

Voltamos a Hainhofer. Kunstschranken, kunstkamera, a moda dos gabinetes de curiosidades. Mas, também, kunst, arte, artifício. Estes buracos profundos, como estas imagens, devolvem-nos a polos opostos, numa relação especular, que é, afinal, a fotografia - que  é, finalmente, a própria imagem. Reflexos de luz, restos de céu, nuvens na água que ali se juntou. Sombras e luz. Na tradição paisagística do intangível.

A tradição do paisagismo, onde estes trabalhos sem duvida se inserem, é, no entanto, a do plano geral, é a contemplação da vastidão do mundo. Aqui, nestes trabalhos, é o plano aproximado que se impõe e é em cada coisa pequena que se insinua a vastidão. Poderemos ler aqui uma relação de proximidade, que me apetece dizer "feminina", de "cuidado", e não de "heróicidade" "masculina"?

É, como na pintura de Matisse, uma natureza humanizada e moderna, de gente que, quando aparece em campo, nada e faz vela e se diverte. São imagens em que a relação especular entre o mundo e a fotografia, entre o macro e o micro permite pensar a fotografia metalinguísticamente, mas que não se constroem como objectos conceptuais. E também são objectos do nosso tempo, do antropoceno: onde acaba a natureza e onde começa a cultura - a arte, o artifício?

José António Leitão, 2022

[1]Jurgis Baltrušaitis, Aberrations s.l., Flamarion, s.d., pp. 89, 96.

Devagar

A suspensão do tempo

Catarina Osório de Castro realiza no Módulo a sua primeira exposição individual com a apresentação do trabalho “Devagar”.

O conjunto de imagens fotográficas a cores, de formato quadrado e dimensões variáveis, revelam um processo de investigação visual no qual a autora desmonta o espaço físico, público e privado, nos seus elementos primordiais e nos seus detalhes significativos.

As formas geométricas elementares aparecem regularmente como que num esforço de organizar o espaço e de lhe conferir significado. Pressentimos em cada fotografia a suspensão do tempo e o movimento determinado de aproximação ao assunto, com o objectivo de capturar a sua essência.

A luz solar contrastante e as sombras profundas participam também nesse processo de simplificação de formas. Elementos tridimensionais restringem-se aos seus correspondentes bidimensionais: um maciço rochoso numa praia e um monumento funerário piramidal são convertidos em triângulos…

Os elementos vegetais também surgem recorrentemente. À possibilidade de observação de uma árvore inteira, a artista contrapõe imagens que resultam de um duplo processo de observação cirúrgico: troncos de árvore seccionados revelam as suas formas elementares e permitem uma observação do seu interior, como que a procurar a sua intimidade ao mesmo tempo que mostram, nos seus anéis, o tempo longo do seu crescimento.

A oscilação entre espaço público e privado é diminuída pela construção de uma intimidade nos lugares públicos. O gesto de aproximação aos assuntos e a observação demorada e meticulosa é o método preferido pela artista para a elaboração das suas fotografias.

Também ao nível das formas assistimos a uma oscilação entre pólos. A presença recorrente da água, em diversos contextos e com diferentes plasticidades, introduz uma dimensão de fluidez e acentua a dimensão melancólica e poética do trabalho: um edredon que escorre para o chão, o cabelo de uma amiga ou a superfície ondulante de uma mesa de pedra…

A montagem da exposição, com imagens de dimensões variáveis e colocadas a diferentes alturas, convidam o visitante a uma deambulação pelo espaço da galeria, com movimentos de maior ou menor aproximação às imagens. Estas deslocações, em certa medida, replicam o procedimento da fotógrafa no momento da criação das imagens. Revelam também a sua surpresa perante o mundo que a rodeia e o encantamento que motiva a construção deste diário visual.

Bruno Pelletier Sequeira

Monstros

Catarina Osório de Castro é uma caminhante incansável. O ensaio estético a que se propõe é a manifestação de uma condição simultaneamente emotiva e espiritual. A contemplação da paisagem torna-se num veículo para uma experiência que a transcende. Pensar a paisagem, para autora, é um exercício de atenção renovada. O esforço de um olhar sem preconceitos em busca de um código oculto e propicio a encontros secretos.

Catarina, fotografa o mar e a sua acção sobre o ambiente. Nas suas imagens, o mar transforma-se num símbolo dinâmico da vida. De uma vida infinita e ilimitada. É um lugar de começos, transformações e renascimentos. O compasso desordenado do mar sobre a rocha, deixa para trás um rasto de registos formais, que nos remete para um lugar comum, o corpo. Um corpus imagético masculino e feminino. Os elementos constituintes da paisagem são simbolicamente isolados com vista à elaboração de uma intensa e epopeica viagem. Uma viagem até a um tempo primordial. Às origens do Mundo.

Maria M. Gomes

Eclipse

Demorei algum tempo a perceber exactamente o que me movia nas imagens da Catarina. Inicialmente, convenci-me que era a qualidade da luz que ela lhes conseguia imprimir. E lembrava-me da imagem de um rapaz no topo de uma escarpa sobranceira ao mar, de costas voltadas para a câmara, o seu olhar seguramente fixo na água e uma toalha cor de areia a esvoaçar-lhe sobre o ombro nu. Lembro-me de pensar como a intensidade daquela escarpa – em teoria, a mais parda das paisagens – podia funcionar como um bom exemplo do quanto uma fotografia pode ampliar a nossa experiência da realidade. Confirmei esta teoria inicial noutras imagens que, com esta, partilhavam uma tendência assumida para a hiper-representação das texturas, para uma ampla e clara profundidade de campo, para uma criteriosa construção compositiva e mesmo para uma aproximação episódica aos protocolos, aos efeitos e aos regimes visuais da pintura.

Até determinada altura, portanto, a minha relação com as obras da Catarina tinha por base uma espécie de fascínio formal, como se o espanto que os meus olhos devolviam às suas imagens não permitisse que me apercebesse do que para lá da superfície também era retratado. Uma outra imagem, contudo, quebrou essa alienação e começou a revelar o novelo de procedimentos, relações e recorrências temáticas que subjazem à prática da Catarina e que têm nesta exposição um novo e mais profundo desdobramento. Na referida imagem, um rapaz (o mesmo?) encontra-se deitado na relva, as suas costas voltadas para a câmara, o seu tronco nu polvilhado de pequenos sinais, como um mapa sem território. A qualidade da luz, a riqueza das texturas, o rigor compositivo e a alusão pictórica mantinham-se, mas o que se revelava agora era sobretudo o grau de intimidade em que esta(s) fotografia se apoiava e o modo como a gestão daquilo que se omite e do que é dado a ver promove uma espécie de curto-circuito na valência sugestiva da imagem, impedindo que a nossa atenção se dissipe ou resolva.

O facto de esta exposição ter ganho o título de Eclipse não será propriamente causal. De facto, muito do que aqui se apresenta, e do modo como se apresenta, tem a ver com esse fenómeno de ocultação que a ideia de eclipse sinaliza: um corpo que se interpõe, um outro que se fragmenta, uma sombra que tudo tolhe e o halo das coisas que se escondem e que, nessa condição, parecem brilhar mais forte. O esconder e o fragmentar do eclipse que aqui nos traz é fruto de um olhar treinado: de um olhar que sabe recortar de uma cena tudo e apenas aquilo que nos manterá interessados. Que sabe que esse interesse depende em absoluto de uma negação, de uma recusa em declarar imediatamente os seus verdadeiros intentos, e do efeito inverso que essa recusa provoca na imaginação. Quanto menos se vê, mais se imagina, e esse é um segredo que a Catarina sabe de cor.

É, muito provavelmente, por isso que tudo nesta exposição é deliberadamente parcial, truncado, dúbio. Está tudo (ou quase tudo) à distância de dois passos, essa medida que nem é demasiado perto para que tudo se torne abstracção, nem demasiado longe para que se torne descrição. É uma distância que nos põe no lugar do participante mais do que no lugar da testemunha e que nos deixa, assim, ao comando do veículo de sentido que o conjunto destas imagens fará. Entre a vista angulosa de uma janela partida, a simetria perfeita do pelo de um cavalo, um corpo reclinado sobre um leito incerto, o pára-brisas de um carro que espelha a cidade, o olhar cego de uma figura de gesso num paço senhorial – o quadro impressivo da sugestão a recordar-nos que a narrativa é mais intrigante quando se apresenta omissa, o olhar mais agudo quando não encontra o que procura, o sol mais ponderoso quando a lua se interpõe.

Bruno Marchand